Receita Portuguesa: como o País se tornou uma exceção na Pandemia

Imagem: NurPhoto/Getty Images - Praça da Figueira, em Lisboa, quase vazia: alta adesão popular ao isolamento e uso de máscaras

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Rafael Tonon 06/05/2020

O 25 de abril este ano caiu em um sábado. Não que isso fizesse diferença: sob estado de emergência, os portugueses não poderiam sair às ruas de qualquer forma para celebrar a liberdade conquistada após uma insurreição que pôs fim a 48 anos de uma ditadura fascista no país.
Uma incomum ironia para tempos incomuns. Foi a primeira vez em mais de quatro décadas que a Revolução dos Cravos, a data mais importante da recente história política do país, não foi celebrada pelas cidades.

As pessoas assentiram, cantaram e balançaram hastes de cravos nas janelas. Um senhor vestido de terno subiu a Avenida da Liberdade, em Lisboa, carregando uma enorme bandeira do país nas costas. "Não podia passar em branco", ele disse. E levou caminhada acima a metáfora que ganhou as páginas dos jornais no domingo seguinte: ele sozinho no meio da via vazia.

Carlos Alberto Ferreira, de 72 anos, carrega solitário a bandeira de Portugal na Avenida Liberdade durante a celebração da Revolução do Cravos Imagem: Corbis/Getty Images


Desde que os primeiros casos do novo coronavírus colocaram a Europa em alerta no final de fevereiro, Portugal estava em sobressalto. Com uma população de idosos que chega a mais de 20% de todos os habitantes, era preciso fazer de tudo para preservar as vidas de pais e avós num tempo (parece que faz tanto) em que se pensava que a covid-19 era uma doença que levava apenas os velhos a óbito.

Fechados em casa
Fechados em casa Soubemos depois que não era, mas nessa altura todo mundo já estava em casa para proteger os seus, mesmo antes do estado de emergência começar a vigorar oficialmente, em 18 de março.
"Eles foram à guerra para lhe salvar. Chegou tua vez de ficar em casa para salvá-los", dizia um cartaz na rua perto de casa.
Nos mercados, onde as filas eram feitas na rua para evitar aglomerações internas, idosos escolhiam frutas, zanzavam pelos corredores e perfilavam nos caixas, quase alheios aos esforços de seus familiares em quarentena. Mais uma ironia.
Portugal se fechou cedo. Antes mesmo da imposição de uma quarentena por parte do governo — que só abrandou no último dia 3, com o início de um estado de calamidade, em que o país ensaia um regresso gradativo de suas atividades "normais"— os portugueses já estavam em casa. Lembro que, ao voltar com a minha esposa de uma viagem ao Marrocos, logo na primeira semana de março, as ruas do Porto, onde vivemos, já estavam muito mais vazias.
Muitas lojas de rua e restaurantes já tinham decidido encerrar por conta própria em nome de um "dever cívico de recolhimento" para proteger os concidadãos portugueses, como diziam os cartazes afixados nas portas e nas vitrines. Foi quando comecei a entender o sentido português de solidariedade (e, depois, de disciplina) que levou o país a ser alardeado pela imprensa internacional semanas mais tarde como "um exemplo", "exceção", "um ponto fora da curva" — expressões que busquei em grandes jornais internacionais.

Solidariedade cotidiana
Com o passar dos dias, esse sentimento foi ficando mais forte: padarias começaram a oferecer café da manhã como cortesia aos profissionais de saúde, cozinheiros e voluntários se reuniram para cozinhar para hospitais e pessoas com necessidade, a mais famosa livraria do país passou a doar livros de seu acervo em um drive-thru inédito no mundo para as pessoas não deixarem de ler.
Na sua rede social, um chef lisboeta, se vendo obrigado a voltar a cozinhar em seu restaurante para fazer entregas e garantir, assim, o salário dos funcionários, colocou parte do espaço à disposição para outros cozinheiros que quisessem usá-lo. "Se tiverem um projeto que não possam concretizar em vossos restaurantes, contatem-nos e aproveitem o nosso espaço e recursos (ainda que limitados)", ele postou.
Empresas concorrentes, por exemplo, criaram kits solidários em que suas compras tinham grande parte da verba revertida aos hospitais. Com o movimento de clientes zerado pela exigência de fecharem as portas, três cafeterias do Porto desenvolveram um pack de cafés para venda em que o mesmo grão passava por três torras distintas para os consumidores poderem avaliar as diferenças sensoriais de cada uma. E, assim, o cliente já ajudava três cafeterias de uma vez só. Um por todos, todos por um.

Aposta no humanismo
Portugal optou por apostar no humanismo. Não só em iniciativas de seus cidadãos, sempre de olho no outro, mas também em medidas do próprio governo e instituições. Em amparo aos imigrantes com processo pendente no país, os representantes optaram por regularizá-los durante a pandemia, para que tivessem acesso ao Sistema Geral de Saúde (o equivalente deles ao nosso SUS), gratuito e universal.
A medida foi amplamente elogiado pela comissária do Conselho da Europa para os Direitos Humanos, Dunja Mijatovic, e outros especialistas. Mais do que pura generosidade, tratou-se de inteligente medida de salubridade pública: proteger a todos contra a covid-19.

A frase "Vai ficar tudo bem" migrou dos desenhos nas janelas para lema da luta contra o novo coronavírus
Imagem: Getty Images.


O apoio do governo veio também em aluguéis suspensos até junho para aqueles com maiores dificuldades econômicas, um enorme pacote de socorro a empresas (sobretudo para manter empregos), medidas exclusivas para os setores mais afetados, como o do turismo.
Ainda que nem todas as iniciativas tenham sido endossadas pela oposição, foram ao menos apoiadas. Como bem disse Rui Rio, líder de um dos partidos críticos ao governo, "não é hora para oposição". Eles procuraram evitar o fla-flu político e defenderam que, quando mais claras fossem as informações nesse momento, melhor para a população.
Nesse sentido, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa realizou cerca de 20 mil assinaturas de sete meios impressos e online para oferecer a novos leitores. A medida foi para conscientizar "os cidadãos para a importância da subscrição de jornais como fonte de informação credível", segundo dizia o comunicado, e, ao mesmo tempo, ajudar os meios de imprensa nesses tempos de crise para o jornalismo.

Autodisciplina
Mas o que me mais me surpreendeu em sessenta dias de quarentena (e contando) foi como os portugueses autodisciplinaram-se. Trouxeram os mais idosos para perto, deixaram de ir aos cafés e padarias, esvaziaram as ruas (ainda que algumas praias e calçadões tenham ficado cheios em dias de sol, um comportamento reprimido até mesmo com drones mantidos pela polícia).
Logo no início de março, antes mesmo do estado de emergência, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa tornou-se o primeiro chefe de Estado a fazer quarentena voluntária, mediante a um possível positivo de covid-19 — que não se confirmou. Mas foi importante como medida de exemplo aos cidadãos, que entenderam que se tratava de uma medida realmente séria para evitar que o país chegasse a se transformar em uma Itália, uma Espanha.
Aliás, quando o país vizinho — com o qual Portugal tem uma fronteira de mais de mil quilômetros — ultrapassava os 10 mil mortos, em território português os óbitos atingiam duas centenas. Em sua "resposta rápida e flexível ao pior cenário", como definiu o El País, principal jornal espanhol, Portugal manteve seus números de mortes baixos, a pouco mais de mil, enquanto escrevo essas linhas, enquanto os casos da doença chegam aos 25 mil.

Boa imagem turística
A repercussão da boa gestão da maior crise de saúde das últimas décadas pode, aliás, trazer bons resultados para Portugal na retomada que os países têm tentado fazer aos poucos, agora. Especialmente no turismo, setor que representa cerca de 15% do PIB do país, e um dos motores para seu recente crescimento econômico.
Com o verão europeu praticamente arruinado, Portugal deve sofrer uma queda de 40% dos turistas, segundo estimativas de um estudo da Oxford Economics. Mas por ter mantido boa conduta durante o pico da pandemia no continente europeu, isso pode inspirar maior segurança aos turistas de que o país pode estar mais preparado para receber visitantes, principalmente em comparação a seus principais "destinos concorrentes", como França, Espanha e Itália.
Pegando carona nas boas práticas, o Turismo de Portugal anunciou recentemente a criação do selo "Clean & Safe" para hotéis, empreendimentos turísticos e agências, que os distingue por assegurarem o cumprimento de requisitos de higiene e limpeza para prevenção e controle da covid-19.
Com duração de um ano, o selo requer a implantação de um detalhado protocolo interno segundo as normas da Direção Geral de Saúde do país. E "auditorias surpresa" para certificar que os estabelecimentos estão a segui-lo.
Se souber aproveitar bem a imagem que conseguiu construir na imprensa internacional como um exemplo de "exceção", Portugal pode conseguir ter um caminho um pouco melhor no pós-pandemia, além dos bons resultados na saúde que conseguiu alcançar. E, assim, mostrar que a receita portuguesa pode dar muito caldo quanto se mistura "generosidade", "eficiência" e "disciplina", como saudou a mídia internacional, além de um charme acolhedor que é o tempero especial local.
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